Transmasculinidades: O reconhecimento e o encontro como caminho para existência

22 de setembro de 2022


Corpos que existem, corpos que falam, corpos que fazem arte. A segunda edição do “Vozes Ballroom”, produzido pela Casa de Mutatis, como parte da programação do Estéticas das Periferias no Espaço Cultural Periferia no Centro, foi o primeiro evento da Ballroom com protagonismo transmasculine na cidade de São Paulo.

Ao celebrar e exaltar a beleza e a existência de corpos transmasculines, o ato também questionou e chamou para a reflexão sobre como a sociedade, além da própria comunidade LGBTQIAP+, relaciona-se com esse grupo.

A convite da Ação Educativa, Veroni Vieira, da Casa de Mutatis, conta que a iniciativa faz parte de um processo de reconhecimento e de encontro entre transmasculines. Busca-se por meio da troca e do compartilhamento, promover espaços seguros para que coletivamente possam existir, expressar e se fortalecer. 

“Atualmente, a gente tem conseguido com certa frequência, pelo menos uma vez por mês nos encontrarmos, seja para oficinas de dança, para falar de saúde, debater políticas públicas. A existência desses momentos é muito importante porque promove o cuidado, o reconhecimento no outro, dá força”, explica.

A transmasculinidade é aceita?

Edan Mar, integrante da Casa Mutatis, avalia que o fato da cultura ballroom ter surgido como uma reação as práticas excludentes dentro do próprio universo LGBT, em relação a pessoas negras e latinas, não torna essa manifestação imune a reproduzir práticas que possam oprimir ou excluir grupos.

“Não é porque é um espaço que se coloca contra opressões que dentro dele vão deixar de existir recortes de classe, de raça, de territorialidades. Crystal Labeija, que iniciou os caminhos da cultura Ballroom em Nova York, não era vista como bonita por ser uma mulher trans negra, dentro de espaços formados por gays e lésbicas brancos e brancas. Sempre vão existir atravessamentos e recortes, os quais podem sim acabar excluindo os transmasculines”, aponta.

Entre as várias apresentações e intervenções do “Vozes Ballroom”, o cantor All Ice foi um dos destaques do line up. Para ele, a questão envolvendos os transmasculines não está mais em discutir se são aceitos ou de ‘ensinar’ para outras pessoas quem são eles, o foco é “superar as práticas e comportamentos que tentam nos apagar ou invisibilizar”.

“Nós somos aceitos, as pessoas já tem informação de que nós somos. Porém, o que acontece é um apagamento. No teatro, na música, nas casas de shows, muita gente fica falando que não existem transmasculines na cena”, crítica. “Junto de outros transmasculines, a gente tem criado um novo momento em relação a esta história de apagamento, de criar uma cena nossa”.

Ao falar sobre a aceitação ou não dos transmaculines, Veroni diz que não há uma resposta simples para isso, mas que  os preconceitos estão presentes e são reproduzidos também nesses espaços. Para ele, um dos desafios principais é com o compromisso das pessoas em estar estar dispostos a ouvir,  rever-se e a assumir a reprodução dessas práticas opressoras, além de ajudar na construção de espaços mais seguros.

“As pessoas se blindam a ouvir qualquer crítica, não aceitam ouvir ‘Oh, você foi racista nisso, ou foi transfóbico. Não querem repensar, acham que estão imunes a errar, e isso as impede de aprender e, principalmente, de mudar, de corrigir essas atitudes’, lamenta. Para ele, os transmasculines estão passando por um momento de retomada, em um processo de “questionar e estar” nos lugares, com uma ação que passa por questionar a invisibilidade, ao mesmo tempo em que reafirma sua presença. Nós estamos aqui e fizemos um evento lindo na Ação Educativa, é sobre isso também.

Outras masculinidades

Para Veroni, Edan e All Ice o transmasculine não é alguém que afirma ou que quer exibir a noção de masculinidade imposta como padrão pela sociedade. Isso porque, explica Edan, o modelo atual passa por uma hierarquização e opressão de tudo aquilo que não é igual a esse “homem”.

“A gente nunca vai chegar a ser um homem cisgênero como a sociedade entende que é esse homem, do qual ela exige e espera uma determinada corporalidade. A ideia não é ser esse homem cis, a gente tem uma ideia de masculinidade dentro do corpo que habitamos, e queremos construir isso de uma maneira saudável”, explica. “Eu, pessoalmente, sinto a transmasculinidade como um lugar crítico dessa definições de identidade”. 

All Ice alerta para o fato de que a  questão racial não pode ser deixada de lado nesse debate, não à toa, o seu lema é “pesadelo do homem branco”.

“Toda pessoa negra dissidente é um pesadelo para o homem branco. Um transmasculine negro que faz arte, que faz política, que está em sociedade e não sucumbe ao projeto de morte e de prisão imposto aos corpos negros, são pesadelos para homem branco”, sentencia.

Por fim, Veroni pontua que as transmasculinidades estão em constante processo de criação e construção de uma nova realidade, de uma “outra” masculinidade, é nesta caminhada, nessa trajetória que ele tira força  para viver.

“Os transmasculines estão construindo novos imaginários sociais, novas rotas, novas estratégias, criando e fortalecendo espaços de segurança sempre olhando para trás, mas andando pra frente”, declarou.

Mini-bios:

All Ice @all.iceee é cantor, músico, compositor, poeta, articulador cultural, pesquisador de criações decoloniais e pai. Atualmente está envolvido na circulação de seu Álbum “Universo Nu”  disponível em todas as plataformas digitais. Vive e trabalha em São Paulo.  

 

 

Edan Mar / Legendary Prince Edan Mutatis | @edan_mar_infinito

Transmasculino, Latino, artista do corpo, produtor e Criador de infinitas possibilidades. Nasceu na Colômbia, mas atualmente mora em São Paulo (Brasil); faz parte da Cultura Ballroom desde 2018, performa principalmente nas categorias de Runway e Oldway; desde março de 2019 é parte da Excelente Kiki Casa de Mutatis @houseofmutatis, onde atualmente é Prince. Em agosto de 2022 recebeu o título de Legendary Transmasculino OldWay. Atualmente é estudante de Dança e performance na SP  Escola de dança.

Veroni Vieira @vieiraveve é Multiartista, Não Binárie, Nanai de Cacau, Mutirante e morador da Zona Leste de São Paulo. Formado em Dança pela Escola Livre de Dança em 2013, e com estudos voltados às danças urbanas e especificamente o FUNK, já participou de trabalhos como intérprete, performer, preparador corporal, orientação artística, direção de cena, educador, fotógrafo entre outros. Conheceu a Ballroom em 2016 quando produziu e participou das Oficinas de Voguing e Waacking com Pioneiro Félix Pimenta no CEU Rosa da China, que contou um pouco do legado histórico de resistência da comunidade desde meados de 1970, em 2018 participou da oficina de Dança e Gênero com Pioneiro Félix Pimenta e da Criação da Ball De Volta para o Futuro no Centro de Referência da Dança, onde fez o registro fotográfico, e vem desde 2019 produzindo junto a sua família “Casa de Mutatis” diversos projetos com objetivo de gerar espaços de reconhecimento e acolhimento as pessoas da comunidade. Que são: Ballroom nas Redes contemplado pelo Programa Vai II 2020, Ball na Laje 2.0, Carnaball, Vírus Ball, Vozes Ballroom, Cypher de Commentator e a 1º Exposição Audiovisual com fotografias suas (registradas na BALL na laje) chamada de ZL M1L GR4U, que ficou exposta em locais como o Instituto Polis e a Oficina Cultural Alfredo Volpi.