Predinho da Ação: A história de um espaço que conecta periferia e centro em um só lugar

31 de maio de 2023

“A gente era metido e bem mais jovem.” A frase é de Magi Freitas, coordenadora institucional  da Ação Educativa, que brinca ao contar um pouco sobre como uma entidade de direitos humanos, que ocupava dois andares de um colégio particular, tornou-se proprietária de um prédio no centro de São Paulo. 

Inaugurada em novembro de 2000, a sede da Ação Educativa, carinhosamente chamada de “Predinho” pelos funcionários e frequentadores, tornou-se um espaço de encontro, debate, fortalecimento, formação e criação de coletivos e artistas da cultura periférica.

Em uma cidade marcada por processos de segregação, violências físicas e simbólicas, a existência de um ponto estratégico para a periferia “estar no centro”, acaba por criar uma contranarrativa de luta e resistência, que marca, não só a história da Ação Educativa, mas também a de organizações políticas dos  movimentos negro, de mulheres, LGBTQIAPN+ e outras articulaçõess que questionam e propõem outras formas de ser e estar no mundo.

“O Predinho da Ação Educativa é testemunha e parte desse movimento de efervescência cultural e política periférica que vemos hoje em São Paulo. A inauguração do espaço coincidiu com o surgimento de símbolos da cultura periférica, como o Sarau da Cooperifa (2001), o Samba da Vela (2000) e o ‘Capão Pecado’, de Ferréz, que é de 2000. Percebemos esse movimento de produção cultural periférica nascendo, nos conectamos a ele e isso fez com que nos organizássemos e crescêssemos”, aponta Eleilson Leite, coordenador da área de Cultura.

O espaço que abrigava a Ação Educativa era o Colégio Sion, ligado à Igreja Católica. Sérgio Haddad, coordenador da área de projetos especiais na Ação Educativa, que, assim como Eleilson e Magi, faz parte da instituição desde sua fundação, conta que a ideia de adquirir uma sede própria foi fruto direto da conjuntura política, marcada pela transição do período da ditadura para a reabertura democrática.

“Funcionar dentro de um espaço privado, ligado à igreja, nos dava uma sensação de segurança maior diante da repressão política da época. A ideia de um espaço público foi se desenvolvendo à medida que superávamos a ditadura. Essa mudança de conjuntura nos transformou em um espaço aberto de formação, encontro, no qual as pessoas podiam entrar e dialogar conosco, criar parcerias, ser um local onde as pessoas pudessem entrar e permanecer”, explica Haddad.

Magi conta que, durante o período de reabertura política, a entidade assumiu a diretriz de atuar de maneira mais incisiva na luta pelos direitos da juventude. “Como iríamos nos relacionar com os/as jovens, receber pessoas, realizar eventos, se nos limitávamos a duas ou três salas, se éramos apenas um espaço de escritório? Fazia-se necessária a criação de um espaço público”.

A aquisição 

Durante muito tempo, Haddad conta que debateu-se sobre qual seria a localização ideal da nova sede, uma vez que, além da questão geográfica, a localização representaria também uma opção política da entidade, “Houve um intenso debate para discutir se a sede seria localizada no centro da cidade ou em algum ponto periferia; acabamos optando pelo centro, para aumentar a facilidade de acesso”, relembra. 

 A escolha pela região central, avalia Eleilson, justificou-se no fato de que a partir do centro o potencial de “influenciar ou estar em contato” com diversas partes da cidade é potencializado.

“A relação ‘periferia x centro’ em São Paulo é marcadamente centrípeta, ou seja, de fora para dentro. Estar no centro não significa estar distante de todas as periferias, mas, ao contrário, permite um contato com todas elas. O centro sempre foi importante para a periferia, o movimento cultural da periferia sempre teve no centro um espaço de articulação”, explica Eleilson.

Parte expressiva dos recursos financeiros para aquisição do espaço foi obtida pela entidade ao ser selecionada por uma campanha de financiamento de jovens noruegueses chamada “Operação Dia de Trabalho”. Outra parte veio da EZE, uma agência alemã, que complementou os recursos. Todo esse processo durou mais de quatro anos.

O prédio que gera cultura


Inicialmente, ter um espaço próprio permitia mais autonomia para desenvolver as atividades do dia a dia, como a possibilidade de testar e experimentar metodologias de ensino para jovens e adultos criadas pela entidade. Porém, foi a circulação e a presença de movimentos sociais, coletivos, artistas e ativistas com uma intensidade cada vez maior, que o potencial,  de um espaço público, no centro da cidade de São Paulo, ganhou vida e passou a produzir resultados.

 “A sede na rua General Jardim ampliou significativamente as possibilidades da Ação Educativa – claro que não foi o único fator, mas sem dúvida é um marco em nossa história”, celebra Eleilson.

A própria área de Cultura, coordenada por Eleilson e criada em 2005, é resultado direto da existência de uma sede própria. “Nós não tínhamos uma área dedicada exclusivamente à Cultura, mas à medida que o prédio foi sendo visitado e ocupado por movimentos culturais e artistas, a demanda por uma área especializada praticamente se impôs para nós”, conta Eleilson.

O primeiro grande marco da relação entre sede própria e espaço de cultura foi a Semana do Hip Hop. Pouco mais de um ano após a inauguração, realizou-se a primeira edição do evento, a partir da provocação e parceria de coletivos de juventude que estavam no centro, na São Bento, para as batalhas de rima.

“A Semana do Hip Hop desempenhou um papel importante de ocupação da organização por meio dos coletivos. Foi uma experiência bastante exitosa que nos ensinou muito e mostrou a importância de construir coletivamente, sem querer tirar o protagonismo de quem está ativamente envolvido, sem acreditar que sabemos mais ou que vamos ensinar. O prédio criou a oportunidade para esse e vários outros eventos de diálogo”, observa.

Outros marcos

Além da Semana do Hip Hop, o graffiti é outro elemento dessa cultura que marca, com pincéis e sprays, a história do predinho. Enquanto a arte em fachadas de prédios tem sido uma marca recente na cidade, quem visita a sede da Ação Educativa vê, todo ano, novos graffitis na fachada e nas paredes internas do prédio, em comemoração ao 27 de março, Dia do Graffiti.

“Começamos com um painel em 2004 e depois a quantidade de painéis foi aumentando, até que foi crescendo e ocupando uma parede, e depois a fachada. Hoje, é estranho quando passamos uma ou duas semanas sem nenhuma arte, o que só acontece quando pintamos tudo de branco para receber a próxima”, comenta Eleilson.

Voz legítima da quebrada, o samba também marcou presença nessa história. Em 2005, uma ação em conjunto com o “Samba da Vela” reuniu e trouxe para o espaço diversas rodas e sambistas tradicionais de São Paulo, para uma série de apresentações com o objetivo de arrecadar recursos para reformar um tradicional bar de samba localizado na praça Roosevelt.

“A partir desse encontro, o pessoal do samba conheceu a Ação Educativa e passou a frequentar aqui. A galera do samba não tem exatamente o perfil jovem, geralmente são pessoas mais adultas, e isso trouxe um público diferente para cá. Essa ocupação do samba durou mais de dez anos, só parou quando tivemos que interromper os encontros devido à pandemia de Covid-19”.

Ocupação

 

A Ação Educativa, atualmente, acolhe atividades em seu espaço público de três formas: por meio de locações, que, embora não sejam a atividade fim da instituição, ajudam na captação de recursos e na manutenção do espaço; apoio a organizações e coletivos por meio de cessão de uso do espaço; promoção de atividades formativas e culturais promovidas pelas áreas institucionais de Eventos, Centro de Formação, Cultura, Juventude e Educação.

Raquel Luanda, supervisora do Centro de Eventos, é responsável pela curadoria e produção das atividades promovidas no “Espaço Cultural Periferia no Centro”, nome do espaço público da Ação Educativa, que reúne diversas iniciativas e também recebe propostas que dão vida à ideia de um espaço aberto e ocupado pela sociedade, onde várias periferias podem se encontrar.

“O nome ‘Periferia no Centro’ a priori traz a dimensão territorial-física da localização geográfica, mas para além disso, há uma dimensão conceitual de provocar a reflexão  sobre “o que é periférico?” e o “que está no centro?” Esse nome expressa o nosso desejo de colocar a periferia no centro das decisões políticas, da luta pelos direitos humanos, da elaboração de pensamento e formas de expressões; em resumo, colocar a periferia no centro das prioridades”

O Espaço Cultural Periferia no Centro reúne diversas iniciativas e projetos que contemplam ações culturais, shows e atividades de coletivos e pessoas das regiões periféricas da cidade de São Paulo. “É um ponto de cultura que permite, por exemplo, que alguém de uma quebrada da Zona Leste, encontre outra pessoa do seu coletivo que mora na Zona Sul, sem ter que atravessar toda a cidade. Eles podem acessar nosso espaço para se encontrar e realizar suas próprias ações”, ressalta Raquel.

Ela destaca que a Ação Educativa tem uma preocupação em qualificar a forma como ocorre essa ocupação e as possibilidades que podem ser desenvolvidas a partir disso. A ideia não é apenas “ceder” o espaço, existe um cuidado nessa acolhida e um interesse em estabelecer parcerias duradouras. “Entendemos que a política se faz no cafezinho que se toma, no encontro em lugar seguro com afeto, e na possibilidade de uso de equipamentos, tudo isso ajuda a fortalecer e potencializar os encontros desses coletivos”.

“Buscamos sempre identificar quais coletivos mais precisam de nós, e que estão alinhados com nossa perspectiva de defesa dos direitos e atuação nas áreas de cultura, educação e juventude”, declara Raquel.

Como parte desse compromisso de diálogo e fortalecimento de novas experiências, ela destaca a presença de grupos da cultura ballroom. Além de ter sido o tema do Estéticas da Periferia em 2022, com apresentações na sede da Ação Educativa, esses grupos continuam presentes no espaço com ensaios, oficinas, rodas de conversa e apresentações.

Entre os critérios para acessar o espaço, Raquel destaca que são priorizados grupos que não possuam financiamento, que realizem atividades gratuitas e que tenham agendas relacionadas ao movimento negro, feminista, LGBTQIAPN+ e periférico. Esses grupos podem preencher um questionário para solicitar o uso do espaço,  que também está disponível no site e Instagram da Ação Educativa.

Além disso, o Espaço Cultural Periferia no Centro desenvolve uma agenda própria alinhada ao planejamento institucional e político da Ação Educativa, fortalecendo uma calendário de atividades que compõem ações como o Estéticas das Periferias, o mês da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha ou o mês do Orgulho LGBT, além de estabelecer parcerias com coletivos e artistas que já passaram ou querem estar no espaço.