O Graffiti como afirmação da rua e da realidade periférica

30 de março de 2023

 

Após dois anos sem a celebração do Dia do Graffiti no dia 27 de março, graffiteiros e graffiteiras de diversas quebradas de São Paulo, renovaram a tradição de transformar a fachada do “Predinho” da Ação Educativa por meio da expressão de suas artes.

Além da inauguração dessas intervenções artísticas, o evento recebeu a graffiteira Ju Costa e o ouvidor da polícia Claudinho Silva, para a roda de conversa “Quanto vale o show: gentrificação do graffiti”. A noite ainda contou com a apresentação do coletivo “Kalamidade”, que trouxe uma discotecagem pesada do Hip Hop nacional e internacional.

Aproveitando esse encontro de artistas e grupos oriundos das diversas partes da cidade, o Estéticas das Periferias conversou com alguns participantes sobre a importância da celebração da data, do  lugar insurgente do graffiti, além de levantar questões relacionadas ao processo de gentrificação e captura da arte por iniciativas  mercadológicas – considerando, ainda, como as questões de raça, gênero e pautas da população LGBTQIAPN+ atravessam tudo isso!

Origens

Presente no calendário oficial da cidade de São Paulo, desde o ano de 2004, a data surgiu como uma ação espontânea de graffiteiras e graffiteiros que, em 1988, realizaram diversas intervenções em homenagem a Alex Vallauri, artista plástico etíope, que faleceu um ano antes, em 27 de março de 1987. Alex foi um dos precursores do graffiti no Brasil.

“O graffiti definiu muito do que a Ação Educativa veio a ser transformar”, explica Eleilson Leite, coordenador da área de cultura da instituição. Ele lembra que o setor de Cultura surgiu impulsionado pelo processo de ocupação de artistas e movimentos do Hip Hop da sede da entidade.

“O nosso setor de cultura foi criado a partir da agitação cultural existente em nossa sede, que estava sendo ocupada pelos movimentos culturais da periferia. A gente começou em 2004 com a semana da Hip Hop, passamos a fazer um evento voltado exclusivamente ao graffiti. Tudo isso foi e ainda é muito marcante para nós”, declara.

Expressão dos que se rebelam

Para a artista Veronica Nuvem, o graffiti, ao eleger as ruas como espaço de criação e produção, consolidou-se como uma forma de expressão capaz de transformar o invisível em visível, de romper com uma uma ordem pré-definida. Nuvem também é arte educadora e já facilitou oficinas de graffiti para jovens em medida sócio educativa, eventos culturais, escolas e para crianças e jovens de movimentos de direito à moradia.

Verônica Nuvem

 

“Essa expressão surge a partir da vivência de pessoas empobrecidas pelo capitalismo, racismo, sexismo e que, na contramão de tudo, criaram uma linguagem artística, uma forma de expressar suas vivências, de romperem com a invisibilidade”.

Verônica explica que a rebeldia está na gênese dessa linguagem, uma vez que se constituiu – principalmente dentro da cultura do Hip Hop – como expressão de revolta frente a uma sociedade desigual e violenta, a qual “sobrevive de empobrecer e explorar pessoas empobrecidas”.

Jana No Hibi , integrante do coletivo “Mulheres Urbanas”, também refere-se à questão da visibilidade para definir o movimento. A artista elege como um dos principais atrativos em relação às linguagens mais tradicionais, a possibilidade de expor e contemplar as obras no espaço público e não apenas em espaços fechados como museus ou galerias. Atuando com graffiti desde de 2012, desenvolve trabalhos nas técnicas de litogravura, murais, ilustrações, cenografia para teatro e exposições.

Jana Habib

“A arte do graffiti possui diversas mensagens; uma delas é a possibilidade de contemplar arte em qualquer ambiente, é ser atravessado por uma ideia ou uma intervenção involuntariamente. Assim como somos atravessados diariamente por diversas coisas, muitas delas de forma negativa. O Graffiti pra mim faz isso com as pessoas, só que de forma positiva”, celebra.

Para Faty, ou Fátima Regina, do DaMafia Girls, a relação com o graffiti começou a partir do momento em que ela, uma artista de periferia, percebeu nessa linguagem o potencial de mudar a percepção que as pessoas têm da cidade onde vivem. Além disso, ela não economiza ao dizer o quanto o graffiti a transformou. Graffiteira desde 2007, Faty também é oficineira e produtora cultura

“O graffiti representa tudo na minha vida. Além de ter me salvado dos transtornos que eu tive de ansiedade e depressão, a arte faz parte do meu dia a dia, o graffiti me salvou de várias formas, me fez conhecer pessoas e lugares incríveis”, declara.

O sentimento de autorreconhecimento também foi essencial na trajetória da Verônica, uma vez que a consciência de ser mulher “num mundo misógino, significa ser atravessada por muitas violências e encontrar um lugar no mundo entre outras mulheres, graffiteiras como eu, onde compartilhamos experiências, criamos juntas, nos fortalece”, confessa.

Qual é a mensagem? 

André Firmiano
André Firmiano

A efervescência do movimento hip-hop no Brasil nos anos 90 foi o que apresentou o graffiti de uma forma mais direta para André Firmiano, graffiteiro, pintor e arte-educador. Ele considera que o graffiti nasceu como uma linguagem dos excluídos, alcançando, nos dias atuais, o status de uma linguagem universal, que – de forma quase espontânea – surge em praticamente todo centro urbano no mundo.

“Originalmente, o graffiti, dentro da cultura hip-hop, foi constituído pelos imigrantes hispânicos e descendentes da diáspora africana dentro dos guetos da cidade de Nova York. É certo dizer que o graffiti foi uma linguagem criada pelos excluídos socialmente e utiliza a rua enquanto suporte para amplificar a mensagem passada”.

Jana é direta ao dizer que, a origem questionadora e anti-opressora do graffiti, não tornou o movimento imune a reproduzir comportamentos machistas, racistas ou heteronormativos. “O Graffiti também possui diversas questões excludentes, estamos em construção, mas não é um mar de rosas. A cena do Graffiti ainda é bem machista, não é tão diversa e evoluída assim”, crítica.

Na mesma linha de Verônica e André, Jana pontua que a origem questionadora e popular, não garante que o discurso represente sempre posições contra-hegemônicas. Ela lamenta, por exemplo, a persistência de práticas machistas e de negação de comportamentos violentos contra mulheres.

“Nesse universo, uma coisa que observo e sinto na pele nesses 17 anos que pinto nas ruas, é o quanto o tempo passa, mas a cena permanece misógina, machista e racista. Ainda vemos muita gente em negação do que acontece à sua volta”, critica.

Para as três grafiteiras, garantir que os espaços sejam seguros para as mulheres trans, bixessuais e lésbicas, que mães estejam presentes e sejam respeitadas tem sido um processo longo, mas que, a partir da união, da criação de coletivos e apoio mútuos, a cena tem feito com que a cena evolua).

“Tem muita coisa importante sendo produzida na atualidade, coletivos se auto organizando em eventos para além da região central da cidade, tendo cuidado em pensar nas especificidades de raça, gênero, nas mães, por exemplo, que é algo que só comecei a ver em eventos produzidos por mulheres”, observa Verônica.

Ela ainda acrescenta que enquanto mulher lésbica e de ascendência indígena, iniciou dois mapeamentos pioneiros no cenário da arte urbana, o “Graffiteiras Indígenas” e “Sapatão das Tintas” tendo como objetivo visibilizar e fomentar a produção dessas artistas. Além do machismo da cena e o ódio e desprezo às mulheres que é a misoginia, Verônica percebe uma violência  direcionada às lésbicas, principalmente as que não tem uma aparência feminilizada.

“É como se a nossa desobediência ao que esperam de nós, fosse insuportável e devemos ser punidas. As violências são perpetuadas de várias formas, algumas sutis, outras nem tanto. Hoje meu foco é tecer esse caminho com as minhas, costurando a história que começou antes de mim pelas nossas pioneiras e vai seguir através de nós e das que estão chegando agora”, declara.

André ressalta que o seu desenvolvimento enquanto artista, foi essencial no processo de se entender como uma pessoa racializada, de entender a potência de ser uma pessoa negra, de como resistir ao racismo e também de cura das feridas causadas por ele.

“Em meu trabalho, minhas propostas artísticas surgem no questionamento racial, onde busco entender o que foi crescer e se desenvolver nos ambientes artísticos sendo uma pessoa racializada e o quanto as questões de gênero influenciaram em meu desenvolvimento. O crescimento se dá de maneira individual mas que só faz sentido se houver ressonância”

Anti-sistêmico ou produto de mercado? 

A chegada do graffiti em espaços elitizados por meio da exposição, comercialização e reprodução de obras em galerias de alto poder aquisitivo, levanta uma questão: graffiti tem sido (ou foi) transformado em mercadoria ou  ainda é uma expressão que representa aqueles que se opõem à práticas exploratórias e excludentes?

Para Verônica, a resposta, ao questionamento sobre se a essência insurgente do graffiti segue imune à mercantilização, é “sim e não”. Na verdade, ela acredita que a discussão nem é tão nova, isso porque desde a década de 80, explica, os pioneiros do graffiti chegaram às grandes galerias, levados por atravessadores, marketeiros e colecionadores de arte.

“Não sei se acredito num purismo do graffiti, mas reconheço que existe sim uma apropriação esvaziada da linguagem”, afirma. Para além da questão da essência da arte, ela aponta que o processo de comercialização tem gerado um cenário que, por trás do “glamour” do título de artista, esconde a realidade de trabalhadoras e trabalhadores precarizados por longas horas de trabalho, baixos cachês e alvo de diversos tipos de assédio.

Jana entende que há fatores positivos em um graffiti ser reconhecido como um produto artístico de valor, principalmente ao considerar a possibilidade dos grafiteiros  viverem “só da sua arte”. Contudo, afirma, “a realidade é que existe uma supervalorização de algumas obras e alguns artistas. Essa arte também pode ser um meio de vida, mas por enquanto isso é para poucos, bem poucos e segue reproduzindo os mesmos recortes de exclusão sociais que a sociedade possuí”.

exposição

O dia do graffiti é um projeto idealizado pela área de cultura em parceria com o Centro de Eventos da Ação Educativa e contou com a participação de 20 coletivos que atuaram na pintura da fachada do prédio da Ação e também de espaços nas suas quebradas, além disso, esta edição contou com uma exposição, feita por 11 graffiteiras, nos muros da FESP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Os trabalhos estarão disponíveis  na faculdade, até o final de maio.