Música eletrônica: O som do passado, presente e  futuro das quebradas

8 de dezembro de 2023

por Paulo Pastore

 

A música eletrônica vem sendo utilizada como ferramenta para a criação de outros futuros possíveis. Essa missão é uma identidade comum que acaba unindo o trabalho da DJ Luana Flores, a “Nordeste Futurista” (João Pessoa-PB), da DJ Brazook (São Paulo-SP), do Nelson DJ, nascido em Manaus (AM) e criado na Itália e Moon K, da Techo na Quebrada (São Paulo-SP).

O Estéticas das Periferias conversou com esses artistas para entender como a música eletrônica, por meio da tecnologia e da estética futurista, cria novas formas de sociabilidade, propõe e defendem a existência de diferentes corpas e corpos, enquanto explora a potência rítmica de sons ancestrais e sintéticos.


A DJ Luana ressalta que a característica inovadora e criativa da música eletrônica estabelece uma potente correspondência com pessoas que têm corpos dissidentes, que estão fora dos padrões hegemônicos estabelecidos socialmente.  

 

 Luana Flores
Luana Flores

“Eu acredito que a música eletrônica vem sendo uma forma de expressar a nossa identidade. Tem sido muito significativo ver outras corpas dissidentes, assim como a minha, ocupando esse espaço e usando a música eletrônica como uma forma de expressar suas lutas, suas questões, além de propor também novas sonoridades” afirma. 

Para a artista, ao estabelecer um diálogo entre o seu território e a tecnologia que vem sendo desenvolvida no mundo, a música eletrônica se transforma em uma ferramenta de desenvolvimento e de representação de grupos insurgentes.

“A gente está aí dialogando com a música que está sendo feita no mundo todo, inserindo elementos do que nos representa, representa o nosso território. Então, pra mim, eu acredito que a música eletrônica vem sendo esse movimento de democratização do acesso ao desenvolvimento, de música, de identidade e de construção de uma nova cena ocupada por corpos dissidentes, LGBTs, nordestinos”.

Brazook
Brazook

Para Brazook, atualmente a música eletrônica vem passando por um movimento de retomada, de um esforço para mostrar que essa é uma forma de expressão que tem origens populares. Ela lembra que, na década de 80, a música eletrônica começou a se tornar popular nos guetos dos Estados Unidos, sendo que, só depois foi levada para a Europa e então se internacionalizou.

“Nas festas de house, lá na década de 80, pessoas em situações de vulnerabilidade, negras, pobres, travestis, pessoas imigrantes, latinas, frequentavam esses espaços de comunhão. Infelizmente, com o tempo isso se perdeu, mas isso está voltando a ser um espaço para pessoas dissidentes, corpos negros e marginalizados estão indo para os eventos, né, performar, mostrar o seu trabalho”, comenta. 

 

A música eletrônica tem como um de seus berços a cidade Chicago, Nova York e Detroit, nos Estados Unidos. O  DJ negro Frankie Knuckles, da club The Warehouse, é tido com um dos precursores do movimento house em Chicago. A origem do gênero ocorreu nos clubes underground que tinha como público majoritário a comunidade negra e gay, que não tinham acesso às principais casas de shows, na época.

 

Tecnologia

Na visão de Moon K, da Techo na Quebrada, a relação da música eletrônica com a tecnologia está na própria concepção da música, uma vez que toda a estrutura da música, da sua produção até execução passar pela aplicação e usos de dispositivos tecnológicos.

Moon K
Moon K

 

“A música eletrônica é construída através de equipamentos que geram sons artificialmente e por meio da técnica de sampling, uma técnica de reutilização de uma parte de uma música ou algum áudio, por exemplo, um trecho de filme. Com o avanço tecnológico, atualmente, grande parte das músicas são criadas através de softwares, então, acredito que essa associação exista e resista por conta dos próprios timbres que, no passado, eram bem diferentes dos instrumentos tradicionais”.

Para Moon K,  se por um lado a necessidade de dispositivos tecnológicos pode criar alguma barreira de entrada, por outro  a receptividade do público e a vontade das pessoas estarem nessa festa, são exemplos que demonstram haver ainda muito espaço para o crescimento do gênero na quebrada. Brazook também compartilha da ideia de que do “ponto de vista material”, a música eletrônica é intrinsecamente ligada à tecnologia.

“Para fazer uma música, a gente precisa de instrumentos digitais e esses instrumentos evoluíram muito com o passar dos anos. A gente usa teclados, pads e computadores. Acredito que devido a essa obrigação ao uso da tecnologia para fazer esse tipo de música, muita gente acaba sendo afastada de maneira quase que natural por questões financeiras”, lamenta.

Contudo, para ambos, a popularização e aumento de acesso a ferramentas tecnológicas digitais tem colaborado para uma transformação da cena.  Para Luana, a democratização do acesso tem passado tanto pelo relativo barateamento de alguns dispositivos como, também, pelo uso da internet como uma plataforma de ensino e aprendizagem.

“Esse tipo de som que a gente vem desenvolvendo, ele está sendo cada vez mais acessível. Tem muito vídeo no YouTube que ensina como é que você produz beat, por exemplo. Claro que ainda não está acessível do jeito como a gente gostaria, mas com certeza vem existindo essa democratização do acesso a essa linguagem”.

 

Futurismo

Para os entrevistados, a forte presença da tecnologia aliada ao esforço de buscar inspiração em movimentos históricos de luta, enquanto se constrói um novo futuro, facilita a aproximação de artistas da música eletrônica com a estética do futurismo. Brazook entende o futurismo, e suas diversas ramificações, como um processo de usar a tecnologia para manter vivas a memória e a história de luta de manifestações culturais e de lutas de resistência às opressões.

DJ Nelson D
DJ Nelson D

“Os arstitas negros, indígenas, pessoas dissidentes têm usado bastante a narrativa do futurismo como uma forma de reviver, de não deixar morrer, as suas histórias, sua cultura e somando esse esforço com a modernidade”, avalia.

Para o DJ Nelson D, indígena radicado na Itália, o futurismo é um recurso estético que tem bastante aderência entre os artistas que olham para o passado não de uma forma idealista, mas com um olhar crítico de entender como os processos históricos moldam o nosso presente e influenciam o futuro.

“O futurismo-indígena é um movimento de produção cultural indígena inspirado no afrofuturismo. Apesar de, hoje, não me colocar como alguém que se limita a esse movimento, existem caraterísticas do meu trabalho que se inspiram e são preenchidas por ele”, pontua.


Luana explica que o futurismo tem exibido diversos desdobramentos que vão da valorização do uso da tecnologia a criação de outras realidades, outros futuros. Para ela, é essa gama de possibilidades que tem feito com que essa estética venha ganhando tanta aderência a movimentos de luta como afrofuturismo, futurismo-indígena e o Nordeste Futurista.

“O futurismo tem sido um termo para manifestar muitas lutas e o que a gente propõe, com o Nordeste Futurista, é dar visibilidade a nosso território, a gente tem lutado para mais protagonismo para nossa história, para nosso espaço, para os ritmos nordestinos”, afirma. “Além disso, tem uma preocupação muito grande com a imagem. Só o fato de ser um projeto encabeçado por uma mulher lésbica nordestina, já representa muita coisa, né? A gente tem feito esse movimento de valorizar símbolos e signos do nordeste, ressignificando-os de uma forma que faça sentido para o momento contemporâneo e também exiba o orgulho do nosso território.

Espaços de afirmação de direitos

Se a relação da tecnologia com a música eletrônica é uma ideia do senso comum que se confirma na prática, a noção de que a “música eletrônica é coisa de branco” é um chavão que, para os entrevistados, ao mesmo tempo que não representa a realidade como ela é, precisa ser desconstruído.

Moon K denuncia que existe um esforço contínuo de manter a música eletrônica como algo restrito a grandes festivais, espaços elitizados, que são feitos e ocupados por pessoas brancas. Apesar de isso criar dificuldades para a construção da cena nas periferias, existe um público interessado em estar nesses espaços e tem muita gente querendo fazer música eletrônica na quebrada.

“As festas, os clubes e os bares menores são engolidos pelas grandes festas e festivais. Acredito que existe um desafio de trabalharmos e investirmos na valorização de artistas locais, mas no meu ponto de vista, isso tem que começar de dentro pra fora. Investindo mais na quebrada com ações sociais, trazendo, de forma acessível, festas de qualidade (soundsystem, equipamento pros artistas se apresentarem, estrutura, etc) pra que isso tudo seja visto e compreendido, principalmente, pelos moradores da periferia, que esse mercado pode trazer inúmeros benefícios para todos”.

O desejo de ver a cena da música eletrônica fortalecida na periferia também é um desejo de Brazzok que tem como um de seus sonhos “levar o tipo de som que eu toco nas festas do centro, da Zona Oeste, pras periferias, pras lugares mais afastados, incluindo o meu bairro Capão Redondo”. Para a artista, se a música eletrônica nasceu da iniciativa de pessoas negras que “hackeavam” o sons, para fazer suas próprias festas, não há porque duvidar que esse processo pode acontecer novamente.

“Não foram as pessoas brancas que criaram a música eletrônica. Talvez tenha sido popularizado com essa imagem, mas a música eletrônica é preta, é indígena, é trans, é gay, é lésbica, é pobre. O que eu tenho percebido hoje, é que esses mesmos grupos estão retomando esses espaços, estão indo nas festas performar, mostrar seu trabalho, mostrar que esse não é espaço dos brancos e nem criados pelos brancos”.

A relação entre público e artistas é central para construção de espaços de segurança dentro da música eletrônica, explica Luana. Isso porque, quando mulheres lésbicas a vêm se apresentando, sentem que aquele é um espaço onde “elas podem ser o que são”, e, para o artista que se apresenta, se reconhecer no público, também é muito significativo. 

“Os espaços de música eletrônica vão ser ainda mais acolhedores quando quem estiver organizando e produzindo esses espaços forem outras corpas e corpos. Ainda falta essa produção com mais a nossa cara, sabe?  Então acho que eu sinto que a gente está conseguindo furar a bolha, mas que ainda não conseguimos alcançar esse espaço de acolhimento massa que a gente merece”.