“Apoiava um caderno nas minhas costas e escrevia em cima de mim, com a luz da lamparina iluminando o quarto”. Essa é uma das lembranças que Vera Eunice de Jesus conta sobre a sua mãe, a escritora Carolina Maria de Jesus.
Professora de língua portuguesa, Vera mantém um intenso e dedicado trabalho de preservação do legado de Carolina: “Uma mulher negra, sem estudos, favelada, que tinha tudo para não dar certo, mas se transformou numa inspiração para mulheres negras em todo mundo”.
Com o tema “Novas Carolinas”, a edição do Estéticas das Periferias 2021 teve uma programação com destaque especial para mulheres negras periféricas que, assim como Carolina Maria de Jesus, produziram arte e cultura capazes de emocionar, inspirar e mudar vidas.
Para Vera, mesmo em situações adversas e, em um mundo que não gosta e não aceita pessoas negras, “novas Carolinas” seguem surgindo em todos os cantos. “Eu participei de uma live a convite de uma aldeia indígena, quando ouvia aquelas mulheres, algumas meninas ainda crianças, eu enxergava minha mãe nelas. Novas Carolinas estão surgindo a todo momento”, celebra.
Hoje aposentada, mas ainda com atividades em escolas, Vera lembra que o gosto por literatura foi um dos aprendizados que recebeu de sua mãe. A opção por ser tornar professora de língua portuguesa surgiu após encontrar um bilhete de sua mãe, no qual dizia que um de seus sonhos é que ela, Vera, crescesse e se tornasse professora.
Outro aprendizado foi, desde logo, a tomada de consciência das dificuldades impostas a uma mulher negra nascida na periferia. Minha mãe sabia que “foi deixada de lado”, que ela viveu muito tempo em ostracismo porque, para pessoas brancas e ‘bem-nascidas’, tratar uma mulher negra e favelada como uma intelectual, como alguém genial, era muito incomodo, muito difícil.
“Eu acho que o negro ainda está engatinhando, não tem o lugar que merece nessa sociedade. Mas a gente sabe disso, minha mãe sabia o porquê não era bem vinda, a gente tem consciência disso e não abaixamos a cabeça não”, conta Vera, sem resignar-se.
Com o Centenário de nascimento da escritora em 2014, Vera conta que houve um grande aumento no interesse por sua mãe, porém desde o começo da pandemia do Covid-19, o interesse por Carolina tem aumentado como há muito tempo não acontecia. “A miséria produzida pela pandemia, agravada pela forma que muitos governos agiram, tornou a obra de minha mãe ainda mais atual”, observa.
Durante um debate, ela ouviu que se, no passado, em “Quarto de Despejo”, Carolina procurava nos lixos ossos para conseguir carne, hoje, ela teria que ter dinheiro para comprá-los. “É preocupante que, mesmo escrita há mais de 60 anos, a obra de Carolina seja atual não só por causa da qualidade literária, mas porque os problemas narrados lá ainda são tão reais, ainda estão vivos”, avalia.
Carolina, explica Vera, tem uma força inspiradora muito grande, “o desejo que minha mãe tinha de mudar de vida, de conseguir criar a mim e minha irmãs, de se tornar escritora, mesmo com tantas dificuldades era muito forte”.
A potência dessa inspiração faz com que Vera seja bastante requisitada para falar da obra de sua mãe. Ela se lembra de um convite para participar de um live produzida por mulheres negras na Alemanha, “as histórias que elas contam por lá são bastante tristes também”. Vera conta ainda sobre um outro grupo de mulheres nos Estados Unidos que está há mais de um ano se organizando realizar um evento com a sua presença: “já fizeram rifa e até venderam feijoada para arrecadar dinheiro. Quando eu falei para gente mudar a visita para um conversa online, elas se recusaram. Querem que eu vá lá para falar de Carolina”, relata.
“É muito bonito ver esse desejo no olhar de tantas outras mulheres que – assim como minha mãe – tiveram que ouvir que não vão dar certo, mas mesmo assim não param, insistem, continuam”, explica. Para Vera, “falar sobre a história, sobre a obra da minha mãe é ter a oportunidade de inspirar essas outras mulheres”.