
Sabedoria dos mais velhos, cadência na fala, ginga de quem já sambou em muitas rodas, a conversa com Francisco Tadeu de Paula, componente da velha guarda da Vai Vai, foi como ver um bom samba sendo composto ou interpretado na sua frente. Neste encontro com o Estéticas das Periferias, o sambista, popularmente conhecido como “Chicão”, falou um pouco sobre como o ritmo constrói a identidade cultural do Brasil.
Chicão é enfático em avaliar que a “força e legitimidade do samba” tem, talvez mais do que qualquer outro gênero se expressa acima de todos os outros gêneros musicais praticados no Brasil”. Parte disso, explica, vem da sua trajetória de resistência que contou, denunciou e moldou a cultura e a formação humana do Brasil.
Um dos elementos marcantes do samba, de acordo com o Chicão, é a capacidade de sincretizar o passado, presente e futuro e de ser um gênero que canta a história, denuncia os problemas presentes, mas também celebra as vitórias e sonha com um futuro.
“Entendo que a nostalgia no samba vem de um passado remoto épico-mítico levantado da situação de escravatura (um quê de M’banza, Banzo…)*, heroico em sua essência, envolvendo valores de uma época de solidariedade e resistência àquela situação (“no tempo do cativeiro”, etc.); um passado recente, também épico e já pós lei áurea quando “livres dos açoites da Senzala, presos à miséria das Favelas…”, exemplifica.
É possível definir ou dimensionar qual a importância do samba para o Brasil?
Constructo social, a importância do Samba para o Brasil (assim como outros valores herdados de África e aqui desenvolvidos no cerne do regime escravista) é, no meu entender, imensurável. Há que se considerar que sua força e legitimidade se expressa acima de todos os outros gêneros musicais praticados no Brasil, e principalmente estimado no exterior, embora possamos levar em consideração também que internamente é possível mapear regiões onde o samba é mais sistematicamente cultuado. Sua elasticidade rítmica permitiu que se expresse através de vários sub-gêneros (bossa-nova, pagode, samba-rock, além dos tradicionais) tornando-o atraente, atual e principalmente produto gerador de riquezas e sonhos de trânsito de classe social, culminando e atestando esse fato na festa do carnaval brasileiro. Portanto, tenho para mim que diante de tanta história e versatilidade – passada, presente e futura – é praticamente impossível aquilatar a dimensão total do fenômeno samba permeando a cultura brasileira, desde o modo de cantar até os trejeitos, idiomatismos e falares etc. Mais que um gênero musical, uma expressão legítima da antropologia cultural e social brasileira.
Ainda é significativo definir o samba como cultura negra ou ele deve ser visto como algo “de todos”?
Sempre será significativo, próprio e legítimo o respeito ao Samba como oriundo da cultura negro-africana e afro-descendente, da mesma forma que se reconhece e se atribui os pilares da filosofia adotada no Ocidente à cultura principalmente grega (se bem que esta também proveio de reinterpretação de conhecimentos anteriores de outros povos e culturas), etc. Porém seria impossível manter o Samba fixado única e exclusivamente à um grupo étnico exclusivo uma vez que, pelos mesmos exemplos e motivos que citei acima, sua riqueza cultural, flexibilidade e valor mercadológico o universaliza e o faz abrangente, sincrético, sujeito a apropriações como qualquer outro fenômeno sócio-cultural em constante dinâmica evolutiva. Porém, não será possível identificá-lo sem que se respeite a força de sua rica pulsação primitiva (fato fácil de se perceber ao se ouvir uma bateria de Escola de Samba, ou os toques dos Ilù, N’goma**.). O fato de em 2007, [ o samba] ser instituído como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira, também responde um pouco à questão em pauta.
As letras e os músicos sempre referenciam os compositores e músicos que vieram antes, de onde vem essa característica “saudosista”?
Entendo que a nostalgia no samba é proveniente de várias vertentes, das quais cito: um passado remoto épico-mítico levantado da situação de escravatura (um quê de M’banza, Banzo…), heroico em sua essência, envolvendo valores sobre uma época de solidariedade e resistência àquela situação (“no tempo do cativeiro”, etc.); um passado recente, também épico e já pós lei áurea quando “livres dos açoites da Senzala, presos à miséria das Favelas…” começam a surgir nomes que viriam cantar esse mesmo passado, mas já mesclado com as constatações de mudanças que a sociedade vinha sofrendo (e eles também), como sujeitos ativos dessa mesma sociedade cantando suas crônicas. Mesmo sofrendo efeitos dessa dinâmica, como a Lenda de Sankofa, o universo de compositores sempre os estimula a voltarem seus olhos e reverências a quem lhes precedeu: é o impulso natural da ancestralidade, gigantesco Baobá perene que, mesmo inconscientemente às vezes, vai fincando suas raízes através da inspiração pelo tempo afora no coração do(a) Compositor(a)…
O que é a “Velha Guarda” e qual a importância dela nas escolas de samba?
Tenho para mim que, sem reduções, é a condição honorífica alcançada pelos componentes mais antigos – em tempo, permanência e idade – em uma mesma agremiação, que detém participação, contribuição, história e estórias na existência da Escola de Samba. Seguindo a tradição dos griots, uma Velha Guarda de Escola de Samba conta e traduz, às vezes com sua simples presença (desfile de Carnaval, por exemplo), trajeto, lendas e folclores do pavilhão que representa – daí sua importância.
Quanto ao apoio do poder público, o samba tem recebido incentivo? Como o estilo deveria ser tratado?
Apesar da cobrança dos mantenedores/customizadores do gênero musical, por ter sido genericamente submetido à condição de mercadoria e o poder público respondendo às mesmas leis de mercado, o samba está sujeito a sazonalidades de incentivo de acordo com a mesma lógica; o poder público administra isso, via de regra através de alguma Secretaria exclusiva (Cultura, p. ex.). Destes últimos tempos de governos ideológicos (2016 em diante) e pandemias, somente muito recentemente tenho notado preocupação um pouquinho maior do poder público com o gênero – pelo menos aqui em São Paulo, capital, que é onde vivo e moro – exigida principalmente pelas temáticas de inclusão e de combate às discriminações estruturais. De resto, tenho para mim a necessidade de maior vitrine para as datas comemorativas e nomes regionais e nacionais pertencentes ao universo do samba, assim como apoio e assistência a muitos sambistas que hoje vivem na condição de quase total vulnerabilidade. A iniciativa e espaço para estes últimos, creio ser prioridade.
A indústria da música (plataformas de streaming, festivais, televisão…) dá “espaço” para o samba?
Justamente por ser “indústria” – e portanto atividade privada de produção em série visando lucro, rotatividade e máxima durabilidade própria – procuram sustentar sempre situações que lhes tragam vantagens. Assim, possuindo inclusive o condão de moldar o mercado de acordo com seus interesses, a “indústria da música” dá espaço principalmente àqueles nomes que soam como estratégias de retorno certo, conjugando lançamentos com estereotipias, apelos visuais e outros recursos que possam reforçar suas garantias e replicar o sistema de onde provém. Esse formato impõe que a porta de entrada das obras ao público seja a capacidade de influência do intérprete dentro da mídia (e essa influência nem sempre é efetiva, pois há hierarquia e sobreposição de interesses de “especialistas” – maestros, produtores, patrocinadores etc., etc. – aferindo constantemente a posição do intérprete em função da finalidade de sucesso e retorno…), seja em gravadoras, rádios, tv’s etc. No entanto, creio não poder generalizar quanto às plataformas de streaming, pois contam-se inúmeras rádios-web, podcasts, lives etc. que, há um bom tempo, vêm mantendo e incentivando as produções do mundo do samba, incluindo aí oportunidades a novas obras e compositores(as), grupos de samba etc., abrindo espaço para os formatos antigos (história e execução) e novos olhares etc. Para além disso, têm se transformado também em verdadeiras “fábricas” de Obras e Talentos as comunidades de samba que proliferam por todo canto da cidade e do estado de São Paulo – vitrines de iniciativa saudável e original dos próprios artesãos e artesãs do gênero sócio-musical-cultural nas Comunidades, matéria prima das obras produzidas e privilegiando os trabalhos autorais.
*Banzo (do quimbundo mbanza, “aldeia”) era como se chamava o sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população negra no Brasil na época da escravidão. Foi também uma prática comum de resistência aos maus tratos e ao trabalho forçado. Pode-se falar que banzo é um sinônimo de depressão
**Ng’oma ou ngoma: (expressão que significa “tambores”) é o tambor típico encontrado em toda a África bantu, construído esticando uma pele de animal sobre um cilindro de madeira. O seu uso foi levado pelos escravos negros por todo o mundo. No Brasil é usado nas cerimónias do candomblé. É semelhante às congas