Pedagogias das Travestilidades: Obra resgata histórico e ferramentas pedagógicas do movimento de travestis e mulheres transexuais
A mesma cidade natal. Passagem pela Universidade Federal de Pernambuco. A escolha na Pedagogia como ferramenta e combate a opressão. Essas são algumas das semelhanças entre Maria Clara, autora de “Pedagogias das Travestilidades”, e o patrono da educação brasileira, Paulo Freire. Ser uma travesti, que organiza sua produção intelectual a partir da sua identidade revela a importância desta obra.
Nesta conversa com o Estéticas das Periferias, Maria fala do seu percurso intelectual, do processo de afirmação de identidade de travesti e também do porquê é no feminismo negro que a luta das mulheres trans e travestis encontra acolhimento e diálogo.
Sobre o seu livro, ainda em fase de pré-lançamento, Maria conta que é resultado do seu trabalho de conclusão de curso, a formação no curso de pedagogia iniciado na UFPE – quando foi a primeira travesti da história do curso – e concluído na PUC-SP.
“Eu sei que não é comum um TCC ser publicado na forma de um livro, ainda mais em uma editora do porte da ‘Civilização Brasileira’. Mas sei do potencial desta obra, do quão significativo é a pedagogia vivida dentro do movimento trans ao longo da história, e é sobre isso que esse meu livro fala. E essa história precisa ser contada e lida”, declara.
Começou com um manifesto
Quando prestou o Enem, em 2014, foi a primeira edição que pessoas trans e travestis tiveram o direito de usar o nome social na inscrição. Ao se matricular no curso de pedagogia na UFPE, teve duas notícias: seria a primeira aluna trans na história do curso e que não era garantido, pela universidade, o direito de usar seu nome social.
“A minha resposta foi escrever um manifesto que publiquei no facebook. A repercussão foi muito grande, o que fez com que portas fossem abertas, iniciou-se diversas discussões sobre o uso do nome social nas universidades e, principalmente, uma reflexão sobre a sub-representação de pessoas trans no ensino superior”,
A relação com o pensamento de Paulo Freire deu-se logo no primeiro semestre, em uma disciplina chamada “Movimentos sociais e práticas pedagógicas”. Maria aponta que ter a noção de que movimentos constroem pedagogia, desenvolvem práticas de ensino e aprendizagem foi essencial para a sua trajetória.
Mesmo com a mudança de cidade, quando recebeu um convite para trabalhar em São Paulo, a proximidade com a filosofia freiriana se manteve, quando decidiu que iria concluir o curso na PUC-SP, onde, assim como na UFPE, há uma catedra com o nome do pedagogo.
“Pedagogias das Travestilidades surge do meu interesse de pensar outras pedagogias, para além das desenvolvidas por Freire. A provocação que eu faço neste livro é no sentido do reconhecimento da existência da prática nas pedagogias das travestilidades”, observa.
“A praxis-político-pedagógica presente dentro do movimento trans foi vital para a formação, para a educação e o despertar pela luta de direito das pessoas trans. Porém, um movimento que tem um histórico tão longo e com tanto a ensinar, nunca teve sua história sistematizada, documentada e narrada em uma editora de grande porte. Este trabalho faz isso”,
Feminismo negro
Maria lembra com a alegria do início da sua escrita acadêmica, de forma regular, deu-se com as blogueiras negras, primeiro espaço aonde começou a escrever com regularidade. A relação com o feminismo negro teve como marca uma proximidade, um diálogo com o qual, conta, sempre se encontrou, sempre sentiu acolhimento.
“Naturalmente, eu fui percebendo que minhas maiores afinidades, o meu encontro político e prático enquanto mulher trans, em regra, dava-se com as mulheres negras, e pelo que percebo, esta é uma experiência que outras mulheres trans também experimentaram”.
Perguntada sobre o porque é o feminismo negro e não o feminismo ‘como um todo’ que dialoga e se reconhece com as mulheres trans, ela lembra do discurso de Sojourner Truth “E não sou uma mulher?” dirigido às mulheres brancas, da obra de Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo para apontar o “não-lugar” que as mulheres negras e mulheres trans se encontram;
“A crítica feita por Thuth no discurso “Eu não sou uma mulher?” tem a mesma raiz das críticas feitas por Lélia e Conceição ao feminismo branco. A negação da identidade, o não-reconhecimento foi algo que as mulheres negras enfrentam a muito tempo, por isso, entendo, que há tanta soliedaridade para com as mulheres trans”.
Escola x pedagogia trans
Tendo se reconhecido como mulher trans aos 16 anos, Maria conta que quando pediu que fosse tratada pelo nome que havia escolhido para sim, na escola onde estudava, ouviu do diretor que “Maria Clara não existe”.
“Principalmente quando comecei a estudar pedagogia, olhando essa história de negativa do meu auto-reconhecimento, aprendi o quanto pode ser falsa essa ideia tão tradicional de que “A escola é o espaço por excelência que nos constituímos como cidadãos”, crítica.
Ela explica que, em muitos casos, diferentes da sua experiência pessoal, não é possível contornar essa negativas, principalmente porque o processo de exclusão e segregação de pessoas trans é algo contínuo. “Onde as pessoas trans aprendem sobre a sua cidadania? Onde conhecem os seus direitos? Como se organizam?”, pergunta-se. A resposta dessas perguntas é o resultado que dá corpo e forma a sua obra.