Uma menina que escrevia cartas para o céu. Uma mulher que escreve livros para o mundo. A obra da premiada escritora cubana, Teresa Cardenas, foi tema do Clube de Leitura do coletivo Mulheres Negras na Biblioteca, organizado em conjunto com a Ação Educativa e a Pallas Editora. O evento marcou a celebração do Dia Internacional da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha.
Através de participação gravada especialmente para o encontro, Teresa respondeu às perguntas enviadas previamente pelos inscritos no evento. Devido às restrições da pandemia, a transmissão da participação da escritora cubana e a interações entre as participantes ocorreu em uma plataforma virtual.
Ao responder sobre como surgiu o seu desejo de ser escritora, Teresa diz que esse desejo começou a se desenvolver desde a sua infância. “Nos livros que eu lia nas bibliotecas, nos livros que me davam nas escolas, não havia ninguém parecido comigo, não tinham autores negros, não tinham personagens negros. Por isso eu comecei a escrever”, conta.
Durante o encontro, a leitura coletiva teve como base uma das obras de maior sucesso de Teresa no Brasil: “Cartas para minha mãe” – que no espanhol era “Cartas al Cielo”. A obra conta a história de uma menina negra, que se torna órfã com a morte da mãe e vai morar com parentes em um espaço onde acaba sendo vítima de diversas formas de preconceito racial e outros mal tratos. O único momento de escape e alento dessa menina é quando escreve cartas que serão enviadas até o céu, para que sua mãe as leia.
“Eu sou uma escritora de temas difíceis e eu escrevo para jovens e crianças”, define-se Teresa. Em um primeiro momento, pode parecer estranho que “temas difíceis” como a vida de uma menina sofrendo racismo dentro de sua própria casa, a qual tem como única interlocutora sua falecida mãe, seja uma obra voltada para crianças e adolescentes.
Sempre questionada do porquê dessa escolha, Teresa responde que alguém precisa contar essas histórias para crianças, e explica que como o racismo vai atingir crianças negras desde muito cedo, elas não podem aprender o que significa e como se defender só quando ficarem mais velhas. Não saber o que é o racismo ou achar que ser negra ou negro não é bonito são problemas que não podem esperar para serem debatidos.
O peso das emoções e as histórias relatadas pelas mulheres participantes do encontro mostram o acerto de Teresa na escolha por “temas dificeis”. Entre as mulheres negras que leram os trechos da obra ou contaram suas experiências, todas tinham algum relato sobre os diversos problemas causados pelo racismo nas suas infâncias.
“Mãezinha, resolveram me colocar na escola daqui. Não gostei nem um pouco. Tem pouca luz lá. Sou a menina mais alta e mais preta da sala. Talvez a mais triste também”. Ao ler esse trecho do livro de Teresa, as participantes se lembram de como era ser uma menina negra na sala de aula. A situação do “não-lugar”, do “desconforto” experimentada pela personagem de Teresa em Cuba, é similar à de uma jovem menina negra no interior do Ceará, em uma grande cidade da Bahia ou em qualquer bairro da capital paulista.
Outro trecho de muito impacto da obra também provoca uma identificação imediata com a realidade brasileira, principalmente no que diz respeito ao projeto histórico-político de “embranquecimento racial”. Em um dos trechos lido no Clube diz: “Mamãe, minha avó diz que é bom apurar a raça. Que o melhor que pode acontecer com a gente é casar com um branco”.
Em uma sociedade como a brasileira, que insiste em dizer que não existe “racismo” e que acredita no “mito da democracia racial”, é esperançoso imaginar o potencial de apresentar para crianças e adolescentes, por meio da literatura, reflexões sobre hierarquia racial.
Obras no Brasil
Em suas visitas ao Brasil, Cardenas participou de eventos de literatura e visitou escolas públicas para palestrar. Leitora e admiradora de Evaristo Conceição, a escritora percebe semelhanças entre Cuba e o Brasil, seja pela grande presença de pessoas negras na sociedade, como pela ausência de negros na literatura ou em outros espaços de poder.
Atualmente, a escritora tem três obras publicadas no Brasil: Cartas para minha mãe, Cachorro Velho e Mãe Sereia, todos pelo selo “Pallas Editora”:
Mãe Sereia: Como seria a travessia de um navio saído da costa da África que, em seu interior, juntou pessoas de diferentes idades e famílias para, num mesmo suspiro, enfrentar o medo e a escuridão do mar desconhecido? Nesse percurso, Mãe Sereia os acompanhou e, à sua maneira, os acolheu amenizando assim essa injusta e dolorosa viagem.
Cartas para a minha mãe: Uma menina escreve cartas para sua mãe morta. Através delas, ficamos sabendo que teve que ir morar com a tia e as primas, que não gostam dela. Não se cansam de lembrar que deveria fazer um esforço para disfarçar sua cor e ficar mais parecida com uma pessoa branca. Este é um romance emocionante sobre perdas irreparáveis e sobre o poder restaurador do amor e do autorespeito.
Cachorro Velho: Por toda a vida, Cachorro Velho foi escravo no engenho de açúcar do patrão. Seu corpo está velho e cansado, sua mente se perde frequentemente em recordações. Às vezes ele até imagina a própria morte, ou pelo menos o que significa estar longe, muito longe. Então, a velha escrava Beira lhe propõe ajudar Aísa, uma menina de dez anos, a fugir.
Escrito por uma descendente de escravos, Cachorro Velho é um retrato duro e comovente da desumanidade da escravidão. “O velho não temia o Inferno: tinha vivido nele desde sempre.”
Clube de leitura – Mulheres Negras na Biblioteca
Um clube para leitores e não leitores de todas as idades, etnias e gêneros, de escritoras negras. Em que o público é convidado a ler coletivamente um texto (em geral, contos) de autoria negro-feminina, em seguida, inicia-se uma troca de impressões a respeito da obra. O objetivo dessa ação é proporcionar um contato direto com a narrativa e aumentar o interesse do público pela literatura de autoras negras.
O Clube MNB é o organizado pelo coletivo “Mulheres Negras na Biblioteca”, projeto de incentivo à leitura de obras de escritoras negras, idealizado e organizado por profissionais de Biblioteconomia e Letras, que se dedicam a promover atividades culturais a fim de contribuir para a formação e aumento do público leitor de livros de autoria de mulheres negras, com o objetivo de tornar notável a importância da inclusão dessas obras nos acervos das bibliotecas.