“Imagina quando voltar o Carnaval!”. Pois é, voltou! A força, a resistência e a disposição para lutar mantiveram vivos os corpos – e a memória – das mulheres, negros, pessoas LGBTQIAPN+, moradores da periferia, que, com baterias, batuques, fantasias e música transformam a rua em um espaço, em um só tempo, de festa e de luta.
O Estéticas das Periferias conversou, a partir de uma perspectiva política, com cinco blocos que compõem o Carnaval na cidade de São Paulo. Nesta conversa, os coletivos contam como, ao mesmo tempo em que a festa é um momento de catarse, é possível, nesta celebração, conquistar avanços políticos, afirmar direitos, criar momentos de acolhimento e reconhecimento.
Para Maira Blasi, professora e colunista da fanfarra “As Obscênicas”, o retorno do Carnaval, pós pandemia do Covid-19, reforçou o significado da festa como um ritual de celebração da vida, de resistência e de disposição para lutar contra aqueles que promovem políticas de controle, opressão e morte. As “Obscênicas” são a única fanfarra 100% feminina de São Paulo.
“Voltar para às ruas tem um gosto de vitória, de quem sobreviveu e resistiu às tentativas de destruição da nossa energia, da nossa arte. A gente já tinha noção da importância da arte, da celebração do Carnaval com uma forma de resistência e de ocupação da rua, mas esses votos foram renovados e deram ainda mais fôlego”, declara.
A festa como um momento de afirmação da vida também é o que move, desde 2016, a “Desculpa qualquer coisa”. Dedicado ao protagonismo lésbico, bissexual e feminino o bloco, que tem como uma das criadoras Renata Corr, DJ e produtora de evento, tem na ocupação das ruas um momento de comemoração da vida, de afirmação da própria existência.
“Quando a gente coloca a ‘Desculpa’ na rua, a gente está dizendo para o mundo que a gente existe, que somos lésbicas, gays, mulheres, pessoas trans e estamos muito felizes com isso, tenho orgulho de ser quem somos”, declara.
Para o ZUMBIIDO Afropercussivo, grupo panafricanista, responsável por organizar o “Bloco Preto”, o Carnaval é uma tecnologia do povo negro, mas é alvo de uma tentativa de captura e ressifignação das pessoas brancas. Para o grupo, que respondeu a entrevista de forma coletiva, é preciso que as pessoas pretas tomem consciência da importância de preservar e fortalecer expressões e manifestações culturais pretas.
“Criamos um Bloco Preto em São Paulo para o povo preto, mesmo com todos os desafios, garantimos que nos últimos 3 anos houvesse Cortejo Preto do Bloco Preto ZUMBIIDO Afropercussivo, que emana do povo preto, no carnaval de rua sem qualquer compromisso com agenda de integração. E isso é tudo. É com isso que temos compromisso e preocupação”, pontuam.
Afirmação e reconhecimento
Mantendo viva a tradição das marchinhas, desde 2004, o bloco “Agora Vai” surgiu do encontro de artistas que queriam ocupar as ruas e afirmar o espaço público como algo que pertence à coletividade. Para Victória dos Santos, cantora, percussionista e filha dos criadores do bloco, o Carnaval sempre foi uma plataforma política, um espaço para exigir e afirmar direitos.
“Para nós, a festa sempre foi política. Política é um dos pilares do carnaval, do samba, é um dos principais motivos para existir essa festa, na verdade. Lógico que a discussão da política se dá, por exemplo, através do tom jocoso das marchinhas ou da forma de se vestir. O “Agora Vai” começa com a gente cantando sobre as enchentes, denunciando as PEC’s que retiraram direitos, o golpe político…”, conta.
Também compreendendo o potencial político da alegria, Maira (“As Obscênicas”) entende que o jeitinho brasileiro de resolver as coisas, “na base da festa” não é algo negativo, é na verdade, uma resposta aos que querem tirar tudo, até mesmo a nossa alegria. “Estarmos nos espaços públicos é uma resposta, por exemplo, às ondas fascistas e neoliberais. Ir para rua fazer festa e celebrar, é demonstrar que eles não tiraram nossa felicidade”, pontua.
Para o ZUMBIIDO, a realização do Bloco Preto é um momento especial de encontro. O grupo elege a data como um momento de encerramento de um ciclo de formação e amadurecimento das pessoas pretas que formam e constroem a luta panafricanista.
“A existência deste bloco é o testemunho do poder da organização, da autonomia, da união, da comunhão, do propósito, da criação e da autodeterminação do povo preto. Sua função é promover e difundir valores africanos e se contrapõe à ideia de integração”, afirma o grupo.
Renata Corr (“Desculpa”) ressalta que o senso de coletividade, de compartilhamento de lutas e de alegrias é um dos sentimentos mais marcantes, pois vai na contramão do individualismo, da competição entre as pessoas e da ideia de que para um vencer, é necessária a derrota e a destruição do outro.
“O Carnaval tem a capacidade de criar um espaço onde as pessoas se sentem representadas e respeitadas na sua diversidade, na sexualidade, identidade de gênero, raça e fé. O carnaval traz um senso coletivo, um senso de pertencimento que fica, muitas vezes, afastado, como se não existisse.”
Espaços de segurança
Se a oportunidade de ocupar espaços, cantar, gritar e se vestir da forma que quiser é um momento coletivo tão aguardado, a preocupação em garantir paz e tranquilidade para essas manifestações é uma pauta central de quem quer exercer esses direitos.
Para o “Desculpa Qualquer Coisa”, “As Obscênicas” e o “Agora vai”, criar espaços de segurança faz parte de uma estratégia coletiva de garantir que ninguém será impedido de exercer a liberdade sobre o próprio corpo ou violentado simplesmente por manifestar sua identidade ou forma de ser.
Victória (“Agora Vai”), acredita na prática de implementação de diversas estratégias, em várias frentes, para criar espaços seguros. “A gente canta versinhos dizendo para ‘cuidar do bêbado que está do seu lado’, usamos os microfones para lembrar de que ‘não é não’, postamos falando sobre a importância de respeitar a identidade do outro. Não tem uma resposta única, mas ter esses cuidados significa também atrair pessoas que têm consciência da necessidade de não reproduzir opressões e agressões”.
Maira (“As Obscênicas”) reforça a preocupação em garantir que o Carnaval seja, de fato, um espaço de liberdade. Para ela, a auto-organização de coletivos feministas, LGBTQIAPN+ e negros atendem a demandas e necessidades que muitas vezes não são recepcionadas em muitos espaços.
“As Obscênicas” é uma fanfarra composta somente por mulheres, sendo a única de São Paulo. O nosso objetivo é incentivar a presença de mulheres nos instrumentos de sopro, principalmente no carnaval”, observa. Para ela, ter uma fanfarra formada somente por mulheres dá uma liberdade e segurança que, muitas vezes, as mulheres não conseguem experimentar da mesma forma em outros espaços carnavalescos.
Por sua vez, o ZUMBIIDO entende que não é possível criar espaços de segurança enquanto homens e mulheres brancos tiverem o controle político e econômico de tudo, inclusive do Carnaval.
“Quando você está numa festa em que você não é dono da casa ou do som, não pode escolher a música ou reclamar da comida. Enquanto não construirmos espaços fundamentalmente pretos, de fato africanocentrados, não haverá espaços seguros para que as pessoas pretas vivam ou manifestem suas identidades”, afirmam.
Têm lugar para todes?
A expectativa de criar uma tradição carnavalesca foi adiada para o “Bloco m’Amem”, que teve a primeira saída em 2020 e que esperava, nesse retorno, colocar mais uma vez nas avenidas de São Paulo um bloco para celebrar e valorizar VHIdas pretas (vidas + HIV) LGBTQIAPN+ e periféricas. Porém, a ausência de apoio e parcerias que pudessem somar financeiramente e estruturalmente com o bloco impediu a realização, neste ano, da sua segunda saída.
“Quando a gente não consegue colocar o ‘bloco na rua’, questionamos qual é o lugar que pessoas pretas, corpos dissidentes, LGBTQIAP+ tem no carnaval. Falando como um produtor cultural, artista independente, preto e bixa. É evidente que a gente queria estar na rua, com nossa comunidade, celebrando, gerando emprego, gerando espaços de acolhimento”, provoca Flip Couto, do Coletivo AMEM.
Flip explica que a decisão de não sair passou pelo entendimento do grupo de que qualquer atividade que envolve o protagonismo e a exposição de artistas, que compõem o espaço de atuação da AMEM, precisa oferecer cachês, infraestrutura e todo apoio necessário.
“Não dá para dizer que a ‘exposição’ é valorizar. Quando pensamos em fazer algo, pensamos sempre em excelência, por isso decidimos não sair neste ano, mas seguiremos ‘carnavalizando’ com diversas ações em 2023”.
Os espaços públicos seguem sendo disputados e ocupados por mulheres, pessoas negras e LGBTQIAPN+ das periferias de São Paulo. Atendendo à provocação do saudoso Wilson das Neves, o morro desceu sem ser Carnaval e seguirá descendo quando for, porque a rua é do povo, a rua é nóis!
nota de rodape: “Quando o morro descer e não for carnaval” (Wilson das Neves)