Futebol de Rua: O diálogo como  ferramenta no enfrentamento ao racismo e machismo

22 de março de 2022

“Não dá para evitar o conflito, mas o que a gente faz quando ele acontece, isso tem como transformar. A metodologia do futebol de rua (fútbol callejero) incentiva essa mudança”. É assim que  Mariana Andrade Fausto, Mari, responde sobre o potencial de mudança e aprendizado que, a partir do futebol,  pode ser construído junto as crianças que participam do Projeto Regional Interpaz.

Além da Mari, que é educadora de futebol de rua e também jogadora, o Estéticas das Periferias conversou com Vanuzia Damasceno, que é professora de futebol no Grupo Afirmativo de Mulheres Independentes (GAMI), no Rio Grande do Norte. 

Mariana Andrade (à direita, de camiseta preta) atua como mediadora de futebol de rua pelo Projeto Interpaz

Atualmente, o Projeto Regional Interpaz, conta com 7 polos de futebol de rua. Três deles no Nordeste, em parceria com o Instituto Esporte Mais, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC) e o Grupo Afirmativo de Mulheres Independentes (GAMI). No estado de São Paulo, há outros quatro polos: Piratinhas, Além das fronteiras e dois em unidades femininas da Fundação Casa, que conta com a participação das jovens que estão em cumprimento de medida  socioeducativa.

Entre os conflitos que presenciou e as mudanças possíveis, Mari dá como exemplo um campeonato de futebol de rua que havia uma regra determinando a presença de pelo menos uma mulher em cada um dos times. Após o fim do jogo, algumas pessoas começaram a dizer que determinado time não deveria ganhar o ponto porque só tinha homens no time. Só que o time que seria “penalizado” era composto por uma mulher trans.

“Quando rolou esse episódio, a menina defendeu que a equipe dela tinha cumprido sim o requisito, afinal era uma mulher. Aconteceu o conflito da identidade dela não ser respeitada, mas o terceiro tempo existe exatamente para enfrentar esse desrespeito e propor uma solução ou ‘ensinar’ para o outro aquilo que ele não sabe ou não conseguiu ainda aprender”, explica. 

Para Mari, este episódio foi simbólico por demonstrar que mesmo em um ambiente onde as questões de gênero, raça e sexualidade são discutidas, a não-compreensão ou desrespeito ao outro acontece. Quando ia jogar bola com os meninos, lembra, que  ouvia muito piada, não era aceita. A diferença é que não havia um espaço, um momento para ela se posicionar, nem nunca esses meninos precisaram parar para me ouvir e, talvez, aprender. 

driblando com o objetividade

Vanuzia, que também foi jogadora de futsal, conta que gostava de driblar, mas sempre com “objetividade”, em direção do gol. “Era bem difícil tomar a bola de mim, mas eu também não arriscava dribles bobos ou perigosos, jogava sempre pensando no coletivo.”

A combinação de dribles com objetividade também serve para ilustrar parte da trajetória do GAMI. A instituição já usa o futebol como ferramenta de aproximação de meninas e mulheres há mais de 18 anos.

“Nós nos aproximamos de muitas meninas, que encontram no futebol um espaço para se expressarem, uma atividade que protege elas de ambientes que podem representar alguma forma de violência ou de exclusão”, afirma. 

Ela explica que adicionar a metodologia do fútbol callejero não foi necessariamente uma grande mudança ou redefinição das atividades ligadas ao futebol, significou, na verdade,  um reforço da ideia de usar o esporte não só como um aspecto de atividade física, mas também uma espaço de construção de novas relações. 

“O terceiro tempo do futebol callejero ressalta a importância do diálogo, da conversa como forma de entender a outra pessoa. Tem sido muito proveitoso integrar o projeto porque nele, a gente aprende a explorar cada vez mais o potencial que o futebol tem de mudar vidas, mesmo que você não vire uma atleta profissional”, afirma.

Para Vanuzia, foi muito produtiva a participação do GAMI no Interpaz, principalmente pela construção de uma rede que enxergasse as potencialidade e ganhos que o futebol pode ter na vida de tantas meninas. Também brinca que, para além da discussão, do debate, sempre que pode “ainda joga bola junto com as novinhas”.

 

terceiro-tempo


O Futebol de Rua – prática nascida na Argentina com o nome de Futebol Callejero – foi concebido como estratégia para alcançar os jovens e integrar dois grupos de jovens em conflito. Ainda dentro da estratégia inicial, tinha o objetivo de recuperar o futebol popular, com crianças e jovens brincando na rua sem um árbitro, com regras acordadas entre eles.

O movimento constituiu-se como ferramenta flexível para abordar as questões das juventudes em diferentes contextos (violência, exclusão social, violação de direitos), sempre adaptada às necessidades das organizações e participantes.

Antes do início de uma partida ou de um campeonato, os times, em comum acordo, podem estabelecer regras ou requisitos que precisam ser seguidos. A necessidade de ter uma mulher no time, por exemplo, foi o que provocou o debate sobre o episódio da menina trans, explica Mari. 

Quando os dois tempos ‘normais’ acabam, começa o terceiro tempo, que funciona como um espaço de reflexão, onde os participantes de ambos times dialogam em relação ao que aconteceu no jogo, falando sobre os valores, e avaliam se merecem ou não os pontos atribuídos por respeito, cooperação e solidariedade. 

Mari lembra que conheceu o futebol callejero aos 17 anos – hoje tem 24. O maior aprendizado com a prática foi perceber como os próprios conflitos e desafios de uma partida, quando bem explorados, podem se transformar em ferramentas de mudanças e aprendizado para os envolvidos.

Ela dá como exemplo o fato de que em qualquer jogo ‘normal’ tem provocação, tem conflito, tem um fazendo piada com o outro. A diferença é que, quando acontece o terceiro tempo,  quem não gostou da piada ou quem foi alvo de alguma brincadeira que não gostou, tem a oportunidade de falar o que aconteceu. Quem fez algo que ofendeu, tem que parar e encarar o resultado daquilo que fez.

Para Mari, apresentar o “diálogo” como uma forma efetiva de resolver problemas não é pouca coisa e nem significa algo meramente simbólico.  “Muitas crianças moram em lares e comunidades em que convivem com violências. Aqui aprendem que pode ser diferente: sem brigas, com diálogo”.

Apesar das diferenças nos objetivos e na dinâmica, Mari afirma que mesmo no futebol de alto rendimento, alguns princípios e também a forma de enxergar a outra pessoa, fazem diferença. “Eu aprendi a entender melhor as outras jogadoras que estão do meu lado, a gente começa a perceber a frustração do outro, mesmo querendo vencer, não deixar o respeito de lado”, finaliza.