“A gente cria, a gente manda”: Mulheres assumem a liderança de selos editorais periféricos

24 de março de 2022

 



Uma conquista de espaço. A criação e o crescimento de selos editoriais liderados por mulheres, principalmente por mulheres negras, representa um movimento que visa garantir que a publicação de livros não fique restrita ao olhar masculino e nem apenas à publicação de escritores homens. 

O Estéticas das Periferias conversou com quatro mulheres que criaram seus próprios selos editorais, as entrevistadas participam da  série Encontros da Câmara Periférica do Livro na Livraria Ponta de Lança!

“A gente cria, a gente manda!”. Essa é a resposta simples e rápida de Dinha Alves, que junta com outras parceiras criou o selo “Coletiva edições Me Pariô”.  Escritora com livros publicados de maneira independente e também em grandes editoras, ela explica que a editora surgiu para que “nós pudéssemos nos auto-publicar, realizando um trabalho com a nossa cara, e não de acordo com os processos e vontades das grandes editoras”.

Para Elizandra Souza, do selo Mjiba, a presença de mulheres na liderança de selos editoriais surge devido à ausência de mulheres nesta posição. “Esse movimento é muito mais uma reação do que uma ação. A maioria das publicações de mulheres ainda está restrita a autopublicação, tudo por conta de quem escreve. As editoras lideradas por mulheres, felizmente, aos poucos, estão mudando esse cenário”. 

Entre as contribuições deste movimento, Maria Vilani, do selo Selo Capsianos, acredita que há ganhos tanto porque contribuem para a “diminuição da ausência do feminino na literatura, além de fomentar a reflexão acerca de questões relacionadas à mulher nos mais variados aspectos.”


Helena Silvestre, Editora Popular Txai, localiza o processo de mulheres assumindo selos editoriais dentro do processo das lutas feministas, o qual tem criado um ambiente no qual as mulheres têm percebido a importância de contar suas histórias, de que as histórias das mulheres tem valor e beleza em contraponto a um mundo machista.

“As estruturas que fazem a literatura circular (as editoras, distribuidoras e toda esta cadeiado livro) ainda estão majoritariamente em mãos de homens, heterossexuais, cis, brancos. A presença de mulheres à frente de selos editoriais abre espaço a vozes que guardam sabedorias preciosas que podem ser compartilhadas em livros e palavras.”

 

Na literatura periférica é diferente?


 Apesar de apontarem ser difícil quantificar se a literatura periférica é um espaço mais receptivo às mulheres do que a literatura comercial, Elizandra e Dinha apontam que a literatura falada, a exemplo dos Saraus e Slam’s é um espaço marcado pela presença de mulheres em posições de protagonismo.

Para Dinha, há um descompasso com o fato de tantas mulheres terem espaço na literatura falada, mas não terem o mesmo destaque quando o olhar se volta para as publicações impressas. “A questão ainda é que, na hora de publicar, de colocar o trabalho dessas mulheres no papel, existem algumas barreiras, gargalos. As mulheres escrevem muito, mas é mais difícil para elas publicarem”, comenta. 

 Elizandra lembra do trabalho publicado pelo Mjiba “Literatura Negra Feminina”, que elaborou uma linha do tempo sobre o trabalho de mulheres negras – começando em 1859, com Maria Firmina do Reis, até 2020. Nessa pesquisa, conta que há períodos de algumas décadas, onde não se encontra publicações de mulheres negras, e isso, avalia, dá-se “não porque as mulheres negras não escreveram, mas porque não tiveram espaço para publicar ou não houve preservação deste trabalho”.

“Cadernos Negros, a partir de 1968, foi um marco muito importante que garantiu um espaço frequente de publicação de mulheres negras. Nos últimos anos, com os Sarau’s e Slam’s funcionaram com um espaço de encontro, de fomento e produção importantes”, explica. “Não tenho números para dizer se há mais mulheres na literatura periférica do que na literatura comercial, o que sei é que nos existimos, e coletivamente estamos criando nossos espaços”.

Já Helena Silvestre, entende que há sim uma diferença das relações de gênero dentro da literatura periférica comparada a literatura “comercial”. Para ela, por mais que as hierarquias de gênero estejam presente nos dois espaços, o fato das editoras periféricas não serem pertencentes a “editores brancos e ricos, mas de companheiros de comunidade”, permitem, apesar de não ser algo pronto, um espaço para desconstrução dos privilégios ligados ao machismo. 

Procura-se leitoras e leitores

Para as entrevistadas, a importância de construção e de fortalecimento de selos editoriais femininos responde a uma demanda há muito existente, a qual pode ser percebida – e sentida – no expressivo número de autoras mulheres que sonham em ter seus trabalhos autorais impressos.

Para Elizandra, o próximo grande desafio atualmente é investir na circulação dos trabalhos. Isso porque, mesmo enfrentando várias dificuldades, editoras lideradas por mulheres e escritoras mulheres têm conseguido publicar seus livros. 

“O nosso desafio principal tem sido fazer nossos livros conhecidos do público que se interessa pelo que fazemos. A gente consegue editais e apoio para a primeira edição, mas é difícil colocar a segunda para rodar; É preciso fazer com que essas publicações circulem mais”, avalia.

Na mesma linha, Maria defende que apesar do engajamento das mulheres como criadoras de literatura e líderes de movimentos literários, com participação ativa em selos editoriais, ainda “fazem-se necessários ampliar os  canais de difusão, distribuição e vendas das obras criadas por mulheres; propiciar cursos em áreas afins e fortalecer o intercâmbio entre as escritoras.”

Câmara Periférica do Livro


A Câmara Periférica do Livro (CPL) é um projeto de articulação de editoras periféricas reunidas com o apoio da ONG Ação Educativa. A associação foi pensada para criar estratégias de produção, gestão, comercialização e divulgação visando alcançar um público ainda mais amplo. 

O espaço construído pela CPL é um ambiente de reunião de editoras periféricas, o qual visa promover uma dinâmica de troca de experiências, de aprendizado e de formação. Para Helena, esta iniciativa representa um “processo riquíssimo de troca,de apoio mútuo, de compartilhamento de experiências É muito diferente construir em comunidade um sonho comum.”

Por sua vez, Dinha acredita que a importância de andar junto com grupos e pessoas que compartilham de ideais comuns faz muita diferença. “Há momentos em que a gente está mais forte e andando mais rápido, nessa hora podemos ajudar que está em um ritmo mais lento ou andando para trás. A CPL permite a gente saber o que tem funcionado e o que tem dado errado nas outras editoras, além da gente contar da nossa própria experiência”.

Elizandra elogia o caráter propositivo da iniciativa, o qual tem buscado tanto capacitar as editoras em questões técnicas e burocráticas, como também promover a circulação, distribuição e comercialização dos livros.

Por fim, Maria Vilani entende que a CPL tem se alicerçado no intercâmbio de escritores num sentido de busca de si no encontro com o outro e na valorização da literatura por meio da difusão, distribuição e venda das obras criadas por autores das camadas menos favorecidas do ponto de vista econômico, mas dotadas de alto nível de criticidade

No processo de organização da Edições Me Parió, o grupo prioriza um espaço de auto-cuidado para as mulheres, o que permite uma ligação entre elas que vai para além da literatura, mas busca dá conta também do lugar da mulher negra na periferia, das alegrias e das dores, de como todas essas questões influência no trabalho artístico e nos outros campos da vida.